quinta-feira, 29 de março de 2012

A CASA DOS EDWARDS


por
 JOÃO BÉNARD DA COSTA


Para o Manuel Cintra Ferreira*


O filme de Hitchcock que se chamou em Portugal A Casa Encantada, chamou-se em França La Maison du Dr. Edwards. Qualquer dos títulos nada tem que ver com o título original: Spellbound. Mas também a casa dos Edwards, que hoje vou reevocar, pela décima milionésima vez, nada tem que ver com Hitchcock ou com psicanalistas.

The opening shot in The Searchers.

Os Edwards que revejo e de que vou falar eram cinco. Aaron, o pai, Martha, a mãe, uma filha ruiva, aí pelos seus 13-14 anos, chamada Lucy (já tinha um namorado, já dava beijinhos, mas ainda tinha vergonha de tudo isso), um rapaz aí dos seus 10-11 (como se chamava ele, que agora não me lembro e não tenho o filme à mão?) e uma miúda de 7, e essa juro a pés juntos que se chamava Debbie, o que espero morrer sem esquecer.

Vou fazer umas contas que nunca fiz. Como a legenda inicial (eu já disse que estou a falar de um filme?) nos situa no Texas e em 1868, Aaron e Martha devem ter-se casado em 1852 ou 1853, que não eram gente para ter filhos sem a bênção da igreja (presbiteriana, neste caso). Por esta altura, já o Texas era o 28º. Estado Unido, embora da União se viesse a separar em 1861, quando começou a Guerra da Secessão. Aaron e Martha deviam ter muitas memórias desses tempos e dessa guerra. Em 1868, como tantos outros, procuravam esquecer essas feridas e reintegrar-se numa ordem doravante inevitável, o que iria acontecer (em 1869) durante o tempo da acção do filme. Nem Aaron, nem Martha, nem Lucy, nem o único filho rapaz, viveram o bastante para ver essa readmissão, que não tinham outro remédio senão desejar, pois só de Sheridan e das tropas dele podiam fiar alguma segurança num território onde ataques de índios e de mexicanos ainda tornavam a vida extremamente incerta. "Ah, este país!", diz, a certa altura, um emigrante vindo das Suécias, Lars Jorgensen de seu nome. Entre os Edwards e os Jorgensen se vai passar quase tudo. As casas são as casas deles. No princípio e no fim.

Casa aqui casa acolá. Casas construídas depois da guerra? Antes da guerra? Não sei que nunca ninguém mo disse no filme ou fora do filme. O mais que me disseram, e foi por menos de meias palavras que aquela gente não era dada a conversas e menos ainda a confidências, é que em tempos, na família, tinha havido outro irmão, irmão de Aaron, vou jurar que irmão mais velho, embora não devam ir sempre por mim, que nem tudo o que conto é de fiar.

Ethan, chamava-se ele. A guerra o levou, mas quando acabada, ele não voltou.

"What makes a man I leave house and nome I and wander off alonel" É exactamente isso que pergunta a canção, que se ouve logo logo ao princípio, canção de um certo Stan Jones, cantada por uns certos The Sons of Pioneers. Desse género de canções bem do Oeste, que fazem mesmo calor cá dentro e dão vontade de pegar na mão do vizinho ou da vizinha, enquanto nos aconchegamos melhor no borralho da cadeira.

E é enquanto ouvimos essa pergunta, cantada em fundo de tela muito escura, que percebemos, a pouco e pouco, que estamos dentro de uma casa (a tal casa dos Edwards, de que eu prometi falar) e que alguém abre as portadas que dão para a varanda da casa, abrindo-a assim, (docemente? repentinamente?) à luz imensa do exterior. Todo o escuro para acasa,todaa luz para a planura. E quem fez assim a luz foi a primeira dos Edwards que conhecemos: Martha, a mãe.

Martha Edwards cumpre apenas um ritual diário (abrir as portadas, finda a hora de maior calor) ou algo ou alguma coisa ouviu que a fez assomar-se à varanda? Podem pensar o que quiserem, mas o que é certo é que os longes vales não estavam tão desertos como a essa hora costumavam estar. Passava um cavaleiro, pedia pousada, não se fecha a porta à noite cerrada. Martha leva a mão à fronte, para se proteger do sol e ver melhor da estrada. E depois diz: "Ethan!" Como não se usam pontos de exclamação quando a gente fala e ela não levanta a voz e não está a falar com ninguém, a exclamação sinto-a eu mais cá dentro do que a ouço lá fora. "Ethan" é a primeira palavra do filme como "Martha" é a primeira pessoa dele. Pouco depois (meçam isto por segundos, que minutos é exagero) conhecemos Aaron, que se vem juntar à mulher, a ver quem vem peregrino. "Ethan", confirma-se outra vez.

Será de mim, será de tantos, estará lá, ou lá não estará, que Martha diz "Ethan" com comoção maior do que a de esperar para um cunhado, por muito amado que fosse, e que o marido não acolhe aquele regresso com o mesmo sentimento ou com os mesmos sentimentos? "A man will search his heart and soul." Mas já Ethan chegou, desceu do cavalo e saudou Aaron e Martha A esta, beijou-a na testa, enquanto ela lhe pousou a mão direita perto do coração e fechou os olhos. Dir-se-ia... É melhor não dizer nada. Se o realizador tivesse querido dizer, tinha dito. Tanto quanto se sabe, quando lhe perguntaram disso, limitou-se a dizer "Mintam".

A canção parou. Mas aquele homem deixou de errar "off "alone" Welcome Home e nenhuma língua como o inglês para sublinhar a diferença entre house e nome. Quando transpõe a porta, Ethan voltou. Aparentemente (ou não) era esperado. "Uncle Ethan", grita com alegria a ruiva Lucy, a única que ainda se lembrava dele, pois teria sete ou oito anos quando o viu pela última vez e, nessa idade, raparigas daquelas já não esquecem. Os outros reconheceram-no pelo sangue ou por histórias contadas. Em Debbie pega ele ao colo, levantando-a no ar, dir-se-ia que com ternura especial.

Há um jantar de família, onde a grande alegria dos miúdos e dos novos contrasta com alguma tensão entre adultos. Aaron, a certa altura, pergunta ao irmão porque demorou ele tanto tempo na guerra, mas Martha corta a conversa. Noutro momento, alguém se esquece de fechar a porta do quarto do casal e Ethan teve que se reprimir quando vê, ostensiva, a cama dele.

Chegam visitantes: um é o filho dos Jorgensen, mais ou menos da idade de Lucy e a começar a namorá-la. Namoro de 15 anos, tão novo, tão lavado. O irmão mofa, como mofam os rapazitos. Mas nem a mãe, nem o tio reagem como era de supor que reagissem. Amor por ali, ainda era cedo ou já era tarde, se quisermos fazer literatura onde não há o mínimo lugar para ela.

Depois chega Martin. Qual Martin? Se quiserem esperar pelo fim do filme, continuarão sem perceber muito bem qual Martin, embora de quanto Martin e de como Martin o filme nos diga tudo. Um rapaz bem bonito, muito moreno, de olhos muito claros, aí pelos seus vinte anos. A cor da pele vinha-lhe de um oitavo decilitro de sangue índio, mas não se percebe bem de onde, pois que os pais, brancos retintos, foram mortos pelos índios era ele criança e desde então os Edwards o adoptaram, como se filho deles fosse. Todos? Quando o rapaz se dirige a Ethan e o chama, com toda a naturalidade: "Uncle Ethan", este recorda-lhe, com maus modos, que não é tio dele e terá que repetir essa rejeição muitas vezes ao longo da história. Porquê? Que tem Ethan contra o rapaz? Que se passou quando mataram os pais dele?

E a noite cai sobre a casa ou a casa cai sobre a noite, que nada dela vemos.

Volta a luz para um pequeno-almoço. Chegam os rangers (era tempo deles). Há mouro na costa ou, voltando ao Oeste, sinais de índios nas lontanias. Os rangers procuram mais homens de barba rija. Ethan e Martin juntam-se-lhes. A expedição não acha nada. Mas, quando chega a noite, achamos nós, regressados a casa dos Edwards. Os índios tinham-se servido de falsas pistas para afastar os homensde casa. Naquela hora do escurecer, o único homem que estava em casa era Aaron, com a mulher e os filhos para proteger.

Ja o crepúsculo e menos encarnado, Aaron e Martha, os únicos que sabem, entaipam-se em casa, as luzes todas apagadas. Das crianças, a mais incontrolável seria Debbie. Por isso os pais a escondem atrás da casa, junto a um túmulo, dando-lhe por companhia a boneca de que ela tanto gostava e fazendo-a jurar que não sairá dali, veja o que vir, ouça o que ouvir. É nessa altura, ou pouco depois, que Lucy percebe de repente e há esse grito tão terrível até porque saído da boca de que víramos os primeiros beijos.

De manhãzinha, onde houvera a casa só há ruínas fumegantes. Por que razão, o primeiro e único nome que Ethan pronuncia é o de Martha? "Martha" nessa sequência é a rima para o "Ethan" do início, na boca dessa Martha que nunca mais veremos, como nunca mais veremos Aaron e o miúdo cujo nome esqueci. Ethan sim, viu-os e antes os não tivesse visto, tal o ódio de que veio carregado, depois de ver os corpos. Mas os índios não tinham morto todos. Lucy e Debbie - as doces raparigas - tinham sido raptadas. Lucy não viveu muito mais tempo. O corpo dela aparecerá pouco depois e ditará a morte do namoradito, como ela ceifado mal começavam a sentir sentidos. Debbie viverá, e é à busca dela que, durante sete anos, Ethan e Martin dedicam as vidas, por razões diferentes, e em buscas diferentes.

Essa busca - the search - é o que dá origem ao título do filme: The Searchers.

Há 50 anos, num fim de Primavera como agora, John Ford estreou esse filme a que em Portugal chamámos A Desaparecida. Esse é o filme que começa com uma porta de casa a abrir-se para John Wayne (John Wayne é Ethan) e acaba com uma porta de casa a fechar-se para ele.

Contei-lhes - tão mal! - dez minutos (se tanto) de um filme com duas horas. Se vos quisesse contar bem, nem um livro me teria chegado. Deixei de fora quase tudo e pouco disse do silêncio do resto. Quem é que disse que o cinema era questão de argumentos e quando se sabe a "história" se sabe o filme? Há quase 50 anos - vi The Searchers na estreia lisboeta, em Julho de 1957 - que vejo este filme, que vi muito mais que 50 vezes, e contínuo sem ser capaz de contar nem dez minutos dele, dez minutos em que John Ford pôs toda a vida que nunca explicou a ninguém. 

Autor: JOÃO BÉNARD DA COSTA, Escritor
Publicado no jornal Público,em 11 de Junho de 2006

Ethan Edwards walks away, and so does the movie.


*Manuel Cintra Ferreira grande admirador do realizador John Ford, ofereceu à Cinemateca pouco antes de falecer uma cópia do filme "A Desaparecida" ("The Searchers", 1956).


(fotos encontradas em samtertainment.wordpress.com)




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