quarta-feira, 14 de março de 2012

Levante-se o réu, diz o juiz


Levanta-te tu meu filho da puta! 

responde João de Deus no filme A Comédia de Deus de João César Monteiro (1995).



João de Deus sentado no banco dos réus.


Discurso de João de Deus 
em  A Comédia de Deus de João César Monteiro 

«Minhas Senhoras e meus Senhores, poupar-vos-ei o relato atribulado em que, por circunstâncias meramente furtuitas e inesperadas, me tornei geladeiro e, pouco a pouco, me fui devotando ao meu ofício. Sou um homem de paz. Podia, quem sabe, ser um criminoso, um proscrito, em permanente rebelião contra uma lei social cega e aberrante. Não sei. Sei que nunca poderia ser político, engrossar o cortejo dessa corja que põe e dispõe do ser humano, guiando-o para um devir cada vez mais favorável à condição de rastejante. "- És réptil e em réptil te tornarás" é a lógica que forma incansavelmente a nossa vergonhosa degradação enquanto indivíduos, enquanto espécie. Contra a trapaça universal os gelados enregelados, o meu gelado, que leva em si toda a energia calórica do mundo, uma palavra amiga, uma prova de amor. Rigor e fantasia. O último luxo soberano de um homem livre que teve a suprema ousadia de, no país dos gatos pingados, exaltar a vida. Não tenho receitas, fórmulas mágicas. Cada gelado que fabrico tem um perfume que lhe é próprio - o seu perfume. Nunca é semelhante ao anterior, nunca será igual ao que lhe sucede. Cada um tem, no entanto, algo para recordar: uma viagem, um passeio, um encontro, um ente querido, a mulher amada... O meu sonho, talvez irrealizável, é fabricar um perfume que concentre em si todos os perfumes, harmoniozamente chegar-me a Deus, à quintessência dos perfumes. Não atraiçoem nunca os sonhos da vossa infância. Se abrirdes os vossos corações talvez possamos provar o glorioso gelado final.»



 
João de Deus discursa na cerimónia de apresentação de um novo "perfume", tendo em vista a sua exportação.


A COMÉDIA DE DEUS 
DE JOÃO CÉSAR MONTEIRO

«A Comédia de Deus é um filme «florentino». Não só porque nele se vislumbram as qualidades raras de um artesanato infinitamente experiente e sagaz, que se mantêm ainda como a única forma de descoberta (a indústria não descobre nada, limita-se a produzir e a reproduzir); não só pelas criaturas que o habitam — condottieres e suas damas, arrebatados por amores dilacerantes, onde a pura abjecção serve para sublimar uma refinadíssima sensibilidade platónica —, mas também porque A Comédia de Deus possui a coerência de uma visão do mundo que não se esgota na vertigem episódica das vidas de João de Deus, a personagem criada por César Monteiro no anterior Recordações da Casa Amarela e que ressurge aqui (renasce) como hábil e misterioso misturador de aromas na gelataria O Paraíso das Avenidas Novas. Como outrora na pintura florentina (como no sorriso da Gioconda que é, talvez, o signo que maximamente a define), A Comédia de Deus (alente-se na evidente ambiguidade do título) é um filme onde a anedota é sempre o desdobramento figurativo, e não metafórico, de uma cena muito mais complexa e terrível. Desde Silvestre (1981) que o cinema de João César Monteiro nos andava a prometer isto. E o isto, que era então uma promessa (ainda enclausurada, por exemplo, no pequeno teorema figurativo do final de À  Flor do Mar), chegou por fim, e é formidável, claro, porque tem o tamanho exacto das suas ambições.
Face a A Comédia de Deus — à justeza e frontalidade do seu radicalismo —, não será difícil imaginar o silêncio embaraçado de todos quantos têm defendido (de forma mais ou menos pública, aliás) milagrosas soluções para a conformação do cinema português e que quase sempre acabam por invocar, afinal, modelos decalcados de um triste folclore nacional - cançonetista (um bom «ritmo», uma boa «rima», feita de palavras que «todos percebam»). Sem querer transformar este filme naquilo que ele não é e que tão obviamente recusa, um objecto corporativo, «espelho» das virtudes do cinema português, e, no entanto, inegável que A Comédia de Deus — até por via do seu sucesso internacional — mostra claramente quais as «paradas» em que o cinema se mexe hoje, mundo fora, e que pouco se compadecem de uma estética «pimba», feita à medida do umbigo português (que, já agora, tem fama de pequeno e ingrato). Rodeado pelas suas Rosarinhos e Joaninhas, obcecado pela higiene da gelataria, o fausto solitário e libertino de João de Deus é um momento importante de resistência do cinema moderno em face de uma morte anunciada pela banalidade da televisão e de todos os produtos em forma de filme que a procuram converter em modelo. Mais do que um filme moral, A Comédia de Deus é um objecto de fé. E por isso o título, que não podia assentar-lhe melhor.»
(João Mário Grilo, Publicado na revista Visão a 25 Janeiro 1996)





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