quinta-feira, 2 de agosto de 2012

TEODORO NÃO VÁS AO SONORO


6 de Outubro de 1927: o dia em 
que o cinema começou a falar


Coisas boas em jornais



“Estes filmes sonoros não levam em conta a linguagem internacional do cinema mudo, e da parte inconsciente de cada espectador na criação do filme, a acção, a trama e o diálogo imaginado por si”. 
Jack L. Warner, fundador da Warner Brothers.

Foto da estreia a 6 de Outubro de 1927 de “The Jazz Singer” (O Cantor de Jazz, 1927), de Alan Crosland, com Al Jolson. É considerado o primeiro filme sonoro da história do cinema. Foto encontrada em screenwritingfromiowa.files.wordpress



O galo da Pathé está para o cãozinho da His Master's Voice como o leão da Metro para o cinema sonoro. Antes, o galo cacarejava em seco e, por detrás da tela do velho Chantecler dos Restauradores, engenhosos "experimentadores" de  som simulavam o ruído do simpático galináceo. Outros , mais sofisticados, punham a girar no gramofone os pesados 78 r.p.m., a uma velocidade tal que o cãozinho ficava com a cabeça a andar à roda e os espectadores-basbaques com os tímpanos a zunir.
O leão da Metro é outra louça: mesmo que o agitar da juba não corresponda ao felino rugir; mesmo que "aquele" som não tenha nada a ver com aquela imagem. A sincronia não foi, decididamente, a primeira das preocupações do cinema quando começou a falar. Num dos mais belos filmes jamais feitos por Hollywood, a "Serenata à Chuva de Gene Kelly e Stanley Donen, conta-se como uma banda sonora, metida a martelo para evitar o fiasco de um grande filme mudo em tempos em que o "falado" já ganhava terreno, sofre tratos de polé e despedaça o já de si periclitante equilíbrio psicológico do atribulado realizador. Percalços deste género ocorreram de facto ao princípio (e não só: o cinema português que o diga…).
Mas, síncrono ou não, a invenção do sonoro, ou seja, da imagem falada, causou reboliço espectacular nos meios cinematográficos. Tudo começou aliás por acaso: em princípios de 1927, Al Jolson participou nas filmagens de um musical de rotina, "The Jazz Singer". Uma história insignificante seria pontuada pelo recentemente inventado sistema de dobragem em disco, desenvolvido pelos Laboratórios Bell e. comprado pela companhia Warner Brothers, uma das mais pequenas companhias de Hollywod. Meia dúzia de canções gravadas, tanto quanto possível sincronizadas com com a movimentação do “jazz- singer", era tudo quanto se pensava poder fazer.
Mas, para o veterano do espectáculo Al Jolson, fazer com que de uma tela saíssem palavras era um desafio mais do que aliciante. Durante as gravações, Jolson proferiu aquilo que viria a ser considerado o "abre-te . Sésamo" dó cinema sonoro. Uma pequena frase, logo após a interpretação de uma canção, anunciava que a outra ainda iria ser melhor: "Esperem aí! Isto não é nada. Ouçam esta!”.
Para os atónitos espectadores de "The Jazz Singer" era mais do que uma revelação: na noite da estreia, em 6 de Outubro de 1927, muitos dos cinéfilos terão reagido quase da mesma forma do que aqueles que num certo fim de tarde dos últimos anos do século XIX fugiram de pânico quando uma parelha de cavalos se pôs em movimento em direcção à câmara dos engenhosos irmãos Lumière.


 Cartaz do filme “The Jazz Singer” (1927) de Alan Crosland, encontrado em movies.zap2it.com e Al Jolson em 1949 dando espectáculo em local desconhecido, com as canções de “The Jazz Singer”. Foto de Cornell Capa e da LIFE Archive.

A difícil transição


O que é certo é que uma febre de ruídos se apossou de imediato dos grandes produtores. A maior resistência veio, inevitavelmente, dos que, segundo as novas regras do jogo, eram obrigados, para sobreviver, a essa mais-valia cinematográfica: a voz.
Chaplin terá pensado que o sonoro não tinha hipóteses; Abel Gance — tinha a certeza — mas o seu "L'Argent", inteiramente mudo apesar de feito nos anos trinta, acabou por vir a ser sonorizado, para responder às exigências da época; enfim, entre nós, havia quem achasse que o cinema "sendo mudo diz-nos tudo mesmo assim" — pelo menos na opinião de uma cançonetista "à la mode" no início da década de trinta que, angustiada, pedia: "Teodoro, não vás ao sonoro"...
Actores houve que não resistiram à invasão sonora: Jolla Clarence ou Buddy Rogers, o segundo marido de Mary Pickford, que ainda recentemente afirmava peremptório: "No tempo do mudo é que era bom". Compreende-se: a Voz de Rogers não resistiu aos rudimentares aparelhos, de gravação — e tudo indica que o seu talento dramático também não. 
Mesmo os que se aguentaram na crista da onda não deixam de evocar com saudade os "gloriosos tempos" do cinema mudo. Para Frank Capra, cujos maiores sucessos como "Não o Levarás Contigo" e "It's a Wonderful Life" foram feitos já no tempo do sonoro "quando o cinema descobriu a sua própria laringe, toda a gente ficou espantada, fascinada e o mundo do celulóide foi virado de pernas para o ar".
E o legendário Raoul Walsh, herói do antes e do depois, autor de "O Ladrão de Bagdad" e "O Preço da Glória", resume o clima do cinema mudo: "Éramos uma quadrilha selvagem, como os garimpeiros, esses pesquisadores que vieram para o Oeste à procura de ouro”.



Duas cenas sensacionais do filme Singin' in the Rain (Serenata à Chuva, 1952) de Stanley Donen e Gene Kelly: A comédia que melhor retrata a passagem do cinema mudo para o sonoro.


Um «boom» sensacional

Que teria acontecido a Rudolfo Valentino se, em vez do olhar lânguido e dos lábios finos eternamente debruçados sobre outros lábios, o cinema nos tivesse legado a sua voz recitando os seus poetas favoritos, Byron e Whitman? Ou, ao contrário, o que seria de Humphrey Bogart, se as filmotecas de todo o Mundo não tivessem hoje para nos oferecer mais do que a imagem silenciosa do incorrigível Philip Marlowe, criado por Raymond Chandler e recriado por Howard Hawks?
Valentino não teria resistido provavelmente. Mas Bogart também não porque o que é certo é que a prova de fogo do som nem sempre foi desfavorável aos que a tentaram. Claro que Bogart quase rosnava: Mae West era mais discreta e a voz saia-lhe, felina, como o ronronar de um gato; quanto a Greta Garbo, recorda-se-lhe a dicção ténue; e de Laureen Bacall muitos cinéfilos continuam a admirar, acima de tudo, a voz grave, quente, sensual. Tudo isto e outras coisas mais foi o sonoro que as criou. Grande parte da mitologia de Hollywood construiu-se em torno da voz, dos tiques, da dicção das suas estrelas principais.
Pelo seu lado, os produtores parecem ter compreendido muito cedo que, mais do que uma dicção perfeita, o que o sonoro exigia era um registo peculiar. De facto, em Janeiro de 1928, quatro meses após a estreia do primeiro filme sonoro, 157 salas de projecção tinham já sido renovadas e estavam prontas a exibir filmes "falados" (tradução literal de "talkies", naturalmente...) e nos finais do ano seguinte o número subia a 8741! "Buchas” sonoras, principalmente constituídas por diálogos insignificantes, eram metidas à força em filmes já prontos ou em fase de montagens: o cinema dessa época é uma mistura desajeitada de imagem muda e envergonhada e de som adoptado à pressa, mais para fazer barulho e para seguir as exigências do púbico, de que para figurar como elemento significante. A noção de banda sonora viria mais tarde.
A qualidade dessas primeiras experiências é imaginável. Trabalhando com soluções de recurso (caixas à prova de som dentro das quais era metida a câmara, demasiado barulhenta para poder coexistir com os pesados e ultra sensíveis microfones, capazes de registarem o bater do coração ou o dramático arfar das “stars” hollywoodescas…), os directores pouco mais podiam fazer do que tentar manter-se na onda. E esperar que melhores dias viessem .

 “«A Canção de Lisboa», rodado em 1933 por Cotinelli Telmo foi o primeiro filme sonoro inteiramente feito em Portugal e constitui modelo para a nossa comédia cinematográfica. Em rigor: o primeiro filme sonoro português foi «A Severa» de Leitão de Barros estreado em Paris, em 1931, e que o público português conheceria a partir de Junho daquele ano.” 
Fotos dos cartazes encontrados em www.ernestodesousa.com e www.amordeperdicao.pt


O atraso habitual

Sem excepção, Portugal aderiu ao sonoro, mas com certa relutância e o habitual atraso:  o histórico filme de AI Jolson só viria a ser estreado em Lisboa no Odéon, no início dos ano trinta, mas a primeira apresentação do sonoro data de 1931, (dois erros no texto; "The Jazz Singer" estreou a 27-02-1929, portanto como filme mudo até porque os cinemas não tinham a aparelhagem necessária e o sonoro começou em Portugal no Royal a 05-04-1930 - nota do blog) quando o recém-inaugurado cinema Royal projectou a película de Van Dyke; "As Sombras Brancas''. A produção cinematográfica nacional por seu lado, só mais tarde viria a aderir à nova invenção, sendo a “Canção de Lisboa" (1933), o primeiro filme a utilizar o som incorporado. Uma série de películas rodadas a seguir tratavam já o som com relativa desenvoltura e construíam a narração em função do diálogo. Mais do que isso, quase se pode dizer, que, antes da invenção do sonoro, o cinema português poucos sinais importantes deixou para História e que, apesar de tudo, é na primeira década de utilização do som que a produção nacional atinge melhor nível.

O CINEMA SONORO EM PORTUGAL - Crónica no Diário de Lisboa no dia anterior à estreia do Sonoro no Royal Cine e Página do livro «OS MAIS ANTIGOS CINEMAS DE LISBOA 1896-1939», de Manuel Félix Ribeiro, Edição da então Cinemateca Nacional. Com o anúncio da inauguração do cinema sonoro em Portugal no Royal Cine em 05 de Abril de 1930 e reprodução do convite.


Se o mudo conserva hoje para nós o fascínio de uma época perdida para sempre, se, na nossa memória de cinéfilos, o silêncio está associado a uma mecânica do movimento próxima da dos bonecos articulados e à inevitável improvisação ao piano, é porque som é para nós, um elemento indissociável da imagem. Ninguém concebe hoje a realização de um filme mudo — a não ser, evidentemente, Mel Brooks, cuja "Ultima Loucura", além de não ser loucura nenhuma; parodia os tiques da dramática exaustão do cinema sonoro recorrendo (suprema vingança) à fascinante atmosfera do cinema mudo. O mesmo afinal, em negativo, que, vinte e cinco anos antes; Gene Kelly e Stanley Donen tinham conseguido com a "Serenata à Chuva";  aí, era a agonia do mudo que com a exuberância do sonoro se pretendia retratar. Mas, para a história, fica hoje a memória do dia em que, o cinema começou a falar  —  precisamente numa noite de Outubro; quando um branco com a cara pintada de preto pronunciou as palavras mágicas: "Isto não é nada!"
Al Jolson tinha razão: o melhor veio depois.

Texto não assinado encontrado 
no jornal Expresso 
de 01 de Outubro de 1977




Documentário em duas partes baseado sobretudo na que é 
considerada a melhor biografia de Al Jolson da autoria de Pearl Sieben. 



“Com o uso da palavra não há mais lugar para a imaginação." 

Charles Chaplin 




Sem comentários:

Enviar um comentário