domingo, 23 de dezembro de 2012

LUIS BUÑUEL SURREALISTA E SANTO

 por

Mário Cesariny

Jornal A Capital 22 Abril 1970

Luis Buñuel, carregando a cruz durante a rodagem do filme A Via Láctea. 1970.
Foto encontrada em www.dga.org


«Detesto o pedantismo e o jargão. Já me aconteceu rir até às lágrimas ao ler alguns artigos dos Cahiers du Cinéma. Na Cidade do México, tendo sido nomeado presidente honorário do Centro de Capitacion Cinematográfica pela Escola Superior de Cinema, um dia fui convidado a visitar as suas instalações. Apresentam-me quatro ou cinco professores. Um deles é um jovem bem vestido, corando de timidez. Pergunto-lhe que disciplina ensina. Ele responde: " A semiologia da imagem clónica." Apeteceu-me assassiná-lo.» Luis Buñuel em O Meu Último Suspiro.

Coisas boas em jornais

     Há muitos anos já foi-me perguntado, passavam uma cópia ultradeficiente, não haveria outra, de Las Hurdes — Tierra Sin Pan, de Buñuel, se achava este filme mais ou menos surrealista do que Un  Chien Andalou, fita cujo guião teve, como é sabido, a colaboração de Salvador Dali. Pela maneira como perguntava (José Ernesto de Sousa) ouvi que era a uma escolha que se incitava, que era para se escolher entre o que todo o mundo admitia como um clássico surrealista (Un Chien Andalou) e um clássico também «ista» mas talvez não surreal, considerada, embora com alguma dificuldade, a qualidade documental de Las Hurdes. A pergunta viciosa, resposta viciada: respondi que no meu entender este último era um filme muito mais surrealista do que Un Chien Andalou e, mesmo, do que L'Age d'Or, e o dilema ficou em suspenso na tábua liceal em que fora posto. Aliás, era impossível responder a direito: era a segunda vez que via em Lisboa essa cópia infernalmente deteriorada do documentário de Buñuel, e creio que pode dizer-se de ambas as passagens o que uma vez dizia Lopes Graça depois de ouvida em S. Carlos uma versão nacional da 9.ª Sinfonia de Beethoven: «Eles (referia-se ao público aplaudidor) julgam que ouviram a 9.ª Sinfonia de Beethoven»... Bastos anos depois vi realmente pela primeira vez Las Hurdes, seguidas e antecedidas de L'Age  d'Or e de Un Chien Andalou, também em cópias novas, e não pude deixar de lembrar-me da  pequena sala cheia da  S. N. B. A., da pergunta de Ernesto de Sousa, da resposta evasiva e da qualidade nula da cópia em julgado.


Os primeiros filmes de Buñuel: Um Cão Andaluz (1929), A Idade do Ouro (1930) e Las Hurdes (1933) 
Fotos encontradas na net.


     Um dos grandes méritos da biografia crítica de Buñuel agora publicada por Francisco Aranda (1) é precisamente a arrumação definitiva deste tipo de questão. Em páginas revistas pelo próprio Buñuel, revela-se-nos um surrealismo espanhol tão forte e independente do parisino que se afirma antes e prossegue depois. Também a este propósito será bom notar e fazer  notar que já em 1950 Breton publicava considerar aberrante a própria noção de Grupo Surrealista (2). São verdadeiramente notáveis, no poder  objectivo da sua agressividade, os poemas e textos inéditos ou esparsos agora reunidos por Francisco Aranda, alguns dos quais antecedem a actividade cinematografica e realmente a anunciam, como o poema em prosa «Palácio de Gelo», publicado em Madrid em 1924, ou o versi-poema «O Arco-Íris e a  Cataplasma», parte de um livro inédito que tem o significativo título de «Cão Andaluz»,  como notáveis são os apontamentos críticos e as respostas a tempo na série de entrevistas e de conversações insertas num tipo de sequência que tem muito a ver com o sistema da colagem surrealista, ou com a possível rodagem de um filme que se chamaria Luís Buñuel... A mais, porém, que estas meras questões de anterioridade original com relação ao surrealismo parisino, o trabalho de F. Aranda permite-nos ver com que actualidade máxima Buñuel pertence a esse surrealismo espanhol profundamente caracterizado, no passado, pela heterodoxia de um Abade Marchena, pela arte militante de um Goya e de um Gaudi, ou, entre os contemporâneos, pela órbita original em que circulam diversos um J. V. Foix, que em 1918 escreve algures dos primeiros textos oníricos surrealistas, um Juan Larrea, um Luís Cernuda; um Rafael Alberti, um José  Maria  de Hinojosa, para nos determos na geração de 27. 


Luis Buñuel durante a rodagem de Tristana, Toledo, Espanha. Foto de Mary Ellen Mark, 1969.


Realmente, se existe complexo cultural que grite desde há séculos e desde as próprias entranhas o conflito desgarrador de Eros é a morte da Vénus Celeste e a de exasperação dos sentidos, é este que bem poderia  ter nas suas fronteiras como  sentença dantesca o lema do «Amor Doido»,  de André Breton: «A beleza convulsiva será erótica-velada, explosiva-fixa, mágica-circunstancial, ou perecerá.» Nos heterodoxos e nos heréticos espanhóis não haverá porém a doce alternativa que apesar de tudo Breton oferece à revolução da vida. A beleza convulsiva será tudo isso e mais ainda, aterradora e embriagadora, mas conhecerá o destino de todas as coisas, que é perecer, e esta visão materialista não destrói, antes aumenta, à maneira dos primitivos, a disponibilidade poética. Buñuel: «Há pessoas muito inteligentes que acreditam em Deus. Porque não, no fim de tudo?  É da natureza humana a procura de uma esperança. Quanto a mim, não  posso deixar de ser como sou. Não recebi a Graça que dá a fé. Interessa-me uma vida com ambiguidades e contradições. O mistério é belo. Morrer e desaparecer definitivamente não me parece horrível, parece-me perfeito. Em contrapartida, a possibilidade de eternidade aterra-me. Escuta: se o meu  melhor amigo tivesse morrido liá muito e me aparecesse, me tocasse numa 'orelha e lhe pegasse fogo instantaneamente e eu não pensaria que ele tivesse saído do inferno. Nem por isso acreditaria em Deus, nem na Imaculada Conceição, nem que a Virgem me pudesse ajudar nos exames. Pensaria sómente: Luís, aqui tens outro mistério que também não entendes» (3)


Luis Buñuel tocando tambor em Calanda, Espanha.
Foto encontrada em flickr.com


     Neste contexto também me parece importante saber, na bela introdução ao conflito geral colocada nas páginas iniciais do livro, que os vinte e dois anos de exílio de Buñuel, e quiçá não apenas eles, moveram a mãe do realizador, fautora primordial da rodagem de Un Chien Andalou, a promover o filho ã categoria de santo, colocando-lhe  o retrato no oratório da casa, ao lado das imagens dos patronos milagreiros e das fotografias do Papa. De maneira nenhuma um intento de recuperação, explicável em força de amor materno, mas a razão outra e louca que pode caracterizar o complexo hispânico. O que assusta em Buñuel, é sua modernidade integral, é a coisificação que em tantos dos seus filmes  sofre o aparato católico. Tal herança chega ao  plateau em estado de madeira, pedra, sombra ou luz, coisas de que se fazem fotografias. Raramente haverá ironia, teria de apoiar-se num significado, num mobiliário útil, e Buñuel «realista» revela-nos um mundo de onde o verbo se ausentou há muito, onde os próprios actores, os personagens, são isentos de significação, movem-se a custo através de sistemas que já não coincidem com o mundo humano. Todo o lirismo foi cuidadosamente estirpado, e, como o tempo vai longe da epopeia, a imagem natural é fornecida pelo escorpião. No que tem eminentes precursores. Não é o poder erótico e blasfematório, transplantado para o «naturalismo» Buñuelesco, de um António Gavin, que surge em tantas cenas de  Viridiana, de L'Age d'Or,  de O Anjo Exterminador? A cinco séculos de vista, não será A Celestina,  de Fernando de Rojas, um primeiro argumento de  Belle de Jour? (4).
     Uma filmografia exaustiva, de 1926 a «Tristana», que ia sendo rodada em Portugal nestes últimos meses, faz-nos saber que Buñuel, nascido com o princípio do século, realizou ou foi co-realizador de cerca de quarenta filmes, dos quais apenas quatro, ao que recordo (Un Chien Andalou, Las Hurdes, O Monte dos Vendavais, La Mort dans Ce Jardin) surgiram em Portugal. Deixo às gentes de cinema, de distribuição de cinema, de técnica de cinema, de crítica de cinema, de gosto pelo cinema, a possível avaliação de causas e efeitos de tal catástrofe.

(1)  «Luís  Bunuel,  Biografia Crítica». por  J.  Francisco Aranda, Editorial Lumen. Barcelona, 1970.
(2) «Entretiens». com  ,André Parinaud. Ed. Gallimard. Paris.  1952.
(3) «Conversações com  Francisco  Aranda». pág. 255.  da Biografia citada.
(4) Ver  no  ensaio  de Xavier Domingo, «Erotique de L'Espagne», Ed. J. J. Pauvert, Paes.  1967

Mário Cesariny
Jornal A Capital 22 Abril 1970


Mário Cesariny no dia 25 de Abril de 1974. Foto de Ana Hatherly.
Fotod o Arquivo Fotográfico da CML.




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